quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O valor histórico da literatura nativa

Jornal GGN – O Pindorama entrevistou Olívio Jekupé, autor de literatura nativa com vasta obra, que compartilha a sua cultura ancestral à partir da própria vivência. “Comecei a escrever em 1984, eu era garoto, bem na época da ditadura, e naquela época aconteciam muitas coisas contra os povos indígenas, muitas invasões, mortes, estupros e era uma época que nada acontecia pra mudar essa situação, e eu achei que teria que escrever algumas coisas a respeito”.
Enviado por Nilva de Souza
Entrevista: Olívio Jekupé
Por Francélia Pereira
Do Pindorama
Na Grécia Antiga, Homero reuniu as histórias da cultura oral de seu povo em suas obras Ilíada e Odisseia. Essas obras foram registradas através da escrita imortalizando esse conhecimento e inaugurando uma nova fase que fortaleceu as bases para o desenvolvimento da cultura helênica.
Aqui no Brasil também temos nossos Homeros, eles são os autores da Literatura Indígena, um “novo” gênero que vem ganhando espaço em nossa sociedade, registrando através da escrita a cultura ancestral da nossa terra.
Antes da Literatura Indígena, o que havia eram pesquisadores e curiosos que tentavam registrar a cultura ancestral em obras que descaracterizavam as narrativas e, como disse Daniel Munduruku:
Os conhecimentos de nossos avós foram deixados para nossos netos de forma oral como uma teia que une o passado ao futuro. Esta fórmula pedagógica tem sustentado o céu no seu lugar e mantido os rios e as montanhas como companheiros de caminhada para nossos povos. Tais conhecimentos, em forma de narrativas – chamado mitos pelo ocidente – foram sendo apropriados por pesquisadores, missionários, aventureiros, viajantes que não levaram em consideração a autoria coletiva e divulgaram estas histórias não se preocupando com os seus verdadeiros donos. (Fonte: Povos Indígenas no Brasil)
Mas hoje podemos contar com autores que vivem a cultura ancestral desde o nascimento, o que garante autenticidade às obras. Dentre esses autores já surgem grandes nomes, como Daniel Munduruku, Kaká Werá, Eliane Potiguara e Olívio Jekupé.
Autor de obras como Xerekó Arandu: A morte de Kretã, O Saci verdadeiro, Iarandu o cão falante, Tekoa, As queixadas e outros contos guarani, entre outras, Olívio Jekupé tem registrado a cultura de seu povo e trabalhado no sentido de garantir que as novas gerações possam dispor de um material de qualidade, que tenta mostrar ao leitor uma História do Brasil sob a visão dos povos ancestrais da nossa terra.
Ficamos honrados em ter conseguido uma entrevista com Olívio Jekupé, autor que merece grande respeito e admiração, pois seu nome já entra para a nossa História como um dos pioneiros na Literatura Indígena do Brasil, que o autor prefere denominar como Literatura Nativa.
Segue a entrevista.
PINDORAMA – Você escreve desde a década de 80 e a Literatura Indígena só começou a ganhar algum destaque a partir da década de 90, o que o torna um dos escritores mais antigos nesse gênero. Fale um pouco sobre sua trajetória na Literatura. O que o levou a começar a escrever? Houve algum tipo de incentivo no início de sua carreira? Como foi seu contato com outros escritores da Literatura Indígena?
OLÍVIO JEKUPÉ – Bom, gosto de falar que nós indígenas escrevemos literatura nativa, literatura indígena é outra coisa.
Mas quero dizer que comecei a escrever em 1984, eu era garoto, bem na época da ditadura, e naquela época aconteciam muitas coisas contra os povos indígenas, muitas invasões, mortes, estupros e era uma época que nada acontecia pra mudar essa situação, e eu achei que teria que escrever algumas coisas a respeito, por isso comecei a escrever poesias defendendo nosso povo, era uma forma de eu desabafar, pensava, porque eu ficava com ódio de saber das coisas que aconteciam no Brasil, por isso vi que a vida de um escritor seria muito importante, porque a gente poderia se defender através da escrita, mas naquela época nunca tinha ouvido falar de um escritor indígena, eu lia muitos livros sobre índio, mas eram trabalhos de antropólogos e historiadores. Por isso eu lia e aprendia muito com isso, mas acreditava que nós indígenas tínhamos capacidade pra escrever também, mas foi uma luta; escrevia, mas nada de conseguir publicar um livro; só 9 anos depois eu consegui publicar meu primeiro livro, como não tinha nenhuma chance de publicar um livro então eu procurei uma editora que publicasse independente, e assim fiz. E foi através de um livro pago por mim mesmo que publiquei um trabalho, alias outros livros também foram assim, diferente de hoje onde algumas editoras me procuram e outros autores indígenas de renome internacional também são procurados.
PINDORAMA – Em suas entrevistas fica sempre evidente sua preocupação em relação à formação dos professores quanto ao conhecimento da História e da cultura indígena. Fale um pouco sobre suas obras voltadas para a Educação.
OLÍVIO JEKUPÉ –  Sempre acreditei que os professores tem que ser os primeiros a lerem nossos livros, porque sei que nosso País, a questão indígena é muito pouco conhecida e sei que se os professores não tiverem conhecimento irão inventar histórias e mais histórias, e com isso pode crescer ainda mais o preconceito que se tem no Brasil.
Por isso minhas obras todas mostram um conhecimento, e sei que poderá ajudar muito os professores, assim como os livros de outros autores. Pois o mundo indígena tem que ser conhecido mesmo, por isso, é que falo que a lei 11.645 está aí, os professores são obrigados a falarem sobre os povos indígenas, mas o que eles irão falar? E como hoje existem vários escritores indígenas, é importante que as secretarias de educação possam conhecer os escritores indígenas que tem no momento, índios que são da cidade e os índios das aldeias, e que irão mostrar conhecimento do seu povo, isso é, cada índio escritor pertence a uma nação, por isso sei que ele seguirá o seu costume.
PINDORAMA – A cultura nacional tem se enriquecido muito com a produção dos autores da Literatura Indígena que, felizmente, tem crescido a cada dia. Mas esses trabalhos ainda não alcançaram um lugar de destaque no mercado, o que, infelizmente, acontece com a maioria das obras de qualidade em nosso país. Você acredita que essa situação possa mudar? Como?
OLÍVIO JEKUPÉ –  Sim, eu sei que está crescendo, mas como eu sou um dos antigos escritores, naquela época nem existia, mas hoje tá surgindo cada vez mais um escritor indígena.
Mas sei que esse crescimento é lento mesmo, mas não devemos desanimar, porque o fruto já foi plantado e agora ele irá crescer aos poucos, mas que cresça com força, com algo que ajude mesmo, que é a conscientização.
PINDORAMA – Seus filhos, Werá Jeguaka Mirim e Tupã Mirin também estão produzindo obras literárias. Fale um pouco sobre os trabalhos deles.
OLÍVIO JEKUPÉ –  Sim, os dois estão escrevendo, sei que eles são novos, mas desde pequeno eu conto histórias pra eles, e minha mulher também sempre contou, e nisso logo que eles aprenderam a escrever, não demorou muito tempo e os dois começaram a escrever, e os dois tem um livro publicado juntos, que se chama: Contos dos curumins guaranis, editora FTD, e o Werá Jeguaka Mirim tem um livro sozinho pela editora panda books, que se chama, Kunumi Guarani. Mas acredito que esse ano eles irão publicar mais algum livro. E para os meus filhos está sendo mais fácil, como as editoras estão abrindo caminho pra esse tipo de publicação, meus filhos entram com mais facilidade, eu vejo os textos deles e mando pras editoras e se gostarem aí eles publicam, aliás, meu filho Werá Jeguaka Mirim ficou muito conhecido por fazer parte da abertura da copa e no momento ele estava com uma faixa escondida e que saiu no mundo todo, e a faixa estava escrito demarcação, foi um ato muito corajoso por parte dele que até eu fico emocionado quando vejo os vídeos na internet. Aliás, eles são os escritores indígenas mais jovens do Brasil, e quando eles assinaram o contrato pela primeira vez com a editora FTD, o Tupã tinha 11 anos e o Werá tinha 10.
PINDORAMA – O processo histórico da formação do Brasil envolve a chegada de povos estrangeiros que trouxeram suas culturas e, em contextos diversos, acabaram se apropriando do território e impondo seus estilos de vida. A cultura nativa da nossa terra acabou sendo “silenciada”, mas nunca morreu; e mesmo entre os brasileiros que não vivem em aldeias essa cultura ainda pode ser observada na forma como falamos, nas histórias contadas por nossos avós, nos nomes de ruas, rios, cidades, alimentos; na nossa música e no nosso jeito de ser. Isso acontece porque nossa Nação vem de uma matriz indígena, já que os estrangeiros que aqui chegam desde 1500 acabam gerando filhos com a população desta terra, filhos que carregam em seu sangue a ancestralidade indígena. Mas poucos conseguem ter consciência dessa ancestralidade e, infelizmente, ainda enxergam os povos que nossa sociedade chama de “indígenas” como estrangeiros no Brasil, o que gera discriminação e preconceitos. Você acredita que a Literatura Indígena pode contribuir para um maior esclarecimento da população brasileira quanto às nossas origens, e você acredita que isso possa ajudar a conscientizar a sociedade brasileira sobre a importância de preservar o conhecimento ancestral?
OLÍVIO JEKUPÉ –  Com certeza, pois essa é a missão da literatura nativa como falo, trazer conhecimento pra todos os brasileiros, e que possa valorizar ainda mais os povos indígenas, porque aqui no brasil a discriminação é muito grande e muito por falta de conhecimento, e com nossos livros chegando nas mãos dos brasileiros eu acredito que isso vai mudar aos poucos. E ao mesmo tempo, é importante que chegue nas aldeias também, porque os governos dos estados enviam livros direto pras aldeias, mas eles enviam livros que não tem nada  a ver com a cultura indígena e isso é mal, porque enquanto os brasileiros estudam a cultura indígena, os indígenas estão estudando literatura dos não indígenas, e as crianças nas aldeias precisam estudar cultura tradicional. Sei que hoje no Brasil temos muitos escritores indígenas até famosos no mundo internacional e nacional, e sei que isso faz com que a sociedade valorize ainda mais o nome indígena que é tão maltratado pela sociedade.
PINDORAMA – Hoje há uma tendência entre os novos autores de utilizar elementos da cultura indígena em seus trabalhos. Desde o lançamento de Meu destino é ser Onça, de Alberto Mussa, muitos autores procuram desenvolver uma pesquisa antes de concluir suas obras. Esse processo é muito importante para que, cada vez mais, a sociedade brasileira conheça e, assim, possa respeitar as tradições ancestrais; mas também torna mais importantes ainda as obras produzidas por autores da Literatura Indígena, como você e muitos outros escritores indígenas, já que por mais séria que possa ser uma pesquisa ela jamais substitui a experiência de viver a cultura ancestral desde a infância, como é o caso de vocês, e, dessa forma, suas obras estão se tornando referência no sentido de preservar o conhecimento e a cultura ancestral em seu estado mais autêntico, sem as distorções que ocorrem em trabalhos de admiradores da cultura que, muitas vezes, não a compreendem direito. Qual é a sua opinião sobre esses novos trabalhos?
OLÍVIO JEKUPÉ – Sim, é verdade o trabalho hoje entre muitos pesquisadores; muitos deles me procuram, assim como outros autores indígenas que são procurados, pois isso é importante porque mostra que nossa literatura nativa está sendo valorizada cada vez mais, pois um trabalho de campo tem que ser muito bem feito e eu sei que nosso conhecimento pode ser respeitado, e nós que vivemos numa aldeia sabemos de como é o dia a dia na comunidade e por isso nossa literatura tem seu valor com isso; pois escrevemos seguindo um aprendizado cotidiano, não uma ficção em cima de outra ficção, e que com isso pode ser criado coisas que não faz parte da realidade, e do contrário pode trazer preconceito.
PARA MAIS INFORMAÇÕES SOBRE AS OBRAS DE OLÍVIO JEKUPÉ:
E-mail: oliviojekupe@yahoo.com.br
Blog: www.oliviojekupe.blogspot.com